24.4.24

Primeira vez

Chego a Marigot e descubro que amava esta cidade muito mais do que pensava. Quantas vezes já isto me aconteceu - com cidades, mulheres, livros, filmes, sei lá que mais?

E logo a seguir, penso quanto gostaria de chegar aqui, outra vez, pela primeira vez.

Quantas vezes cheguei a Marigot? Não sei e não quero saber. Só quero chegar aqui outra vez, pela primeira vez.

(Post interrompido pelas circunstâncias)

O vento caiu completamente, o que é normal porque estou no lado de sotavento de uma ilha. No caso, Dominica. Até aqui a viagem tem sido um sonho. Tive vento, o S. D. anda bem, o tripulante é impecável (o único azar é não ter ainda apanhado um professor como eu, mas isso tem cura).

Penso nesta época, que tantos altos e baixos teve. Do ponto de vista financeiro foi uma catástrofe. Da carcaça não sei que dizer, mas penso que o mais apropriado será fazer uma grande vénia de agradecimento ao "melhor SNS do mundo", que me pôs nos braços competentes da Dra. C. D., cirurgiã na Martinica. A cura está a levar mais do que o que devia, é tudo. Não há bela sem senão. Basta porém comparar-me com o que estava há três meses e as vénias passam a duas. O S. D. deu algumas chatices, claro. Que seria de uma embarcação sem surpresas?

Se há uma área da qual não me posso queixar é a da convivência com o meu filho. Só isso chega para me tirar todas as dúvidas e mais alguma: foi uma época fantástica. 

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Aliás, uma época que se termina com um almoço como o de ontem só pode ser assim. Pena não estar capaz de a descrever: está a entrar vento e preciso de olhar para outro

Diário de Bordos - Marigot, St.-Martin, DOM-TOM França, 24-04-2024

Sinto-me como se houvesse em mim uma porta giratória: por um lado entram as dores, pelo outro saio eu. Regresso eu, saem elas. (Esta é a parte wishful thinking. Não é assim que as coisas se passam. Quem decide é a carcaça, não sou eu...).

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Mal cheguei fui passear por Marigot,  Começo por dizer que «passear» é um exagero grosseiro. Arrastei-me por Marigot e confirmei duas coisas: a) gosto infinitamente mais de St. Martin do que da Martinique; b) Se voltar a passar uma época nas Caraíbas será aqui.

Há mais guito do que no Marin. A cidade é mais bonita, está limpa, há menos obesos nas ruas, os preços são mais baratos, há mais escolha em tudo. Claro que uma verdadeira comparação exigiria que ficasse aqui três meses. Deixemos as verdadeiras comparações de lado e fiquemo-nos pelas primeiras impressões. 

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Escrevo estas linhas (escrever é um exagero grosseiro: bato semi-aleatoriamente nas teclas e às vezes acerto na que quero) no Centr'Hotel, um dos primeiros sítios aonde fiquei as primeiras vezes que vim a St.-Martin. Foi renovado, tem um bar chique (o Mai-Tai está bastante bom) e pergunto-me se quero verdadeiramente ir jantar fora ou se volto para bordo dormir tudo o que não dormi nestes últimos dias. A sesta de hoje não chegou, nem pensar nisso.

O bar tem um spray anti-mosquitos. O velhinho Off. Rousseau era um idiota. A civilização, meu caro Emílio, nunca fez mal a ninguém. Muito antes pelo contrário: só faz bem e nunca há que chegue. 

Enjoo de terra. Hei-de navegar duzentos e cinquenta anos e tê-lo-ei como tive a primeira vez que dele me lembro, em Lourenço Marques, a subir as escadas para casa da tia Luísa A. Tive de me agarrar ao corrimão, pareceu-me que ia cair. Hoje de manhã aconteceu-me a mesma coisa e agora volta. Parece uma vingança: no mar não tenho o mais pequeno sintoma de enjoo e mal chego a terra vejo tudo a abanar. 

O mai tai não está tão bom como inicialmente me pareceu. Tenho de voltar a Oakland para beber um decente. (Passo a minha vida a correr atrás da excelência e tudo o que consigo apanhar é a primeira sílaba: ex.)

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Se um dia tiver de fazer um inventário deste inverno, o tripulante que me saiu na rifa vai para os três primeiros lugares do topo da lista das coisas boas que me aconteceram na vida e não só este Inverno. Vou beber um shot de Mount Gay à saúde do rapaz.

Romaria em Marigot: Arhawak, Centr'Hotel, Bistro (sic) de la Mer e a incontornável Paula do Sous Marin. A padaria aonde ia tomar o pequeno-almoço agora é a livraria papelaria aonde comprava tinta para as canetas. E livros, claro. É uma boa livraria.

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A porra da mesa continua a abanar como se estivesse no mar e a música é horrível, como Sempre em todo o lado.



(Cont.?)

23.4.24

Diário de Bordos - Ao largo de St. Kitts, Ilhas de Sotavento, Caraíbas, 23-04-2024

Duas noites seguidas como esta e um gajo fica a pensar que não vai conseguir deixar de navegar antes dos cem anos. Lua cheia, força cinco a um largo, o S. D. a voar baixinho à estonteante velocidade de quase oito nós (isto é piada privada para o meu amigo K., a quem dedico o post), St. Kitts pelo través de bombordo toda iluminada, bonita, a fazer esquecer que é a única ilha mortalmente aborrecida de todas as Caraíbas, visibilidade excelente, Saint-Martin a sessenta milhas, um tripulante a quem hoje disse que não sei o que vou fazer quando tiver de navegar sem ele. Antigamente dizia-se que um bom dia de mar vale por dez maus. Uma noite destas - ainda por cima logo à seguir a outra igual - vale por dois séculos de chatices. O bote é bonito, confortável, anda bem (excepto a manobrar: parece um camião com três dos quatro eixos bloqueados) e para os amadores do género é uma óptima recomendação. Eu prefiro coisas mais finas e desportivas, mais sensíveis, por assim dizer, daquelas que estremecem só de olharmos para elas. 

(Pergunto-me quantas nódoas negras teria agora, feitos três quartos da viagem, se estivesse no P.) 

É verdade que o dia foi chato. Ou melhor, alternadamente chato e sublime. Mas uma noite destas - enfim, duas seguidas - trituram tudo o que possa haver de seca até está ficar irreconhecível. Nada que desague nisto é uma seca. Rigorosamente nada (piada privada para mim).

Nem sequer esta combinação de cirrus estratificados e Lua cheia que me impede de ver as minhas estrelas favoritas: Orion, Gémeos, Sirius - há pouco pareceu-me tê-lo visto de fugida mas desapareceu. Ainda há quem se admire com a minha abstinência total quando no mar.

Só conheço uma coisa capaz de melhorar esta mistura, mas isso fica para depois.

20.4.24

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 20-04-2024

Despedida do Marin: Marin Mouillage, Mango, Kokoa e Liv. Ausente: Cayali. Talvez amanhã, que é dia de hipocrisia. 

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Cada vez me penso mais com sessenta e sete anos e não sessenta e seis. Como se quisesse fazer fast forward.

Quero.

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Começo a habituar-me à ideia de que há coisas que não farei. À cabeça: navegar o estreito de Magalhães e ver os meus netos adolescentes, ex-aequo. Algo me grita que tenho as prioridades amalgamadas.

Talvez o que me resta seja para as destrinçar.

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À imagem do conforto em conviver comigo, as bermudas Napapijri trinta e quatro começam a ficar-me largas. Muito pouco. Espero não chegar às trinta e dois. A ideia de que a minha elegância depende de uma injecção hebdomadária parece-me injusta. Devia ser consequência da minha força de vontade, da minha capacidade de contenção, tão reduzida.

Cada vez menor, de resto. Ao contrário do tal conforto.

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Muito menos confortável é a ideia de que vou para o mar sem cartas decentes. Talvez seja por isso que prefiro dizer que tenho sessenta e sete anos em vez de sessenta e seis. A idade é como manteiga no cu das asneiras.

(PS: continuo a insistir com a Raymarine para ter as minhas cartas no plotter. Nunca gostei de sodomia, qualquer que seja a asneira.)

Faces, promessas, terrores

Não me lembro de muitas das caras que tive em almofadas. Isso aterroriza-me. Não exagero: é terror o que sinto. Talvez no plural, mesmo: terrores. Tantos quanto as caras que esqueci. Não me refiro a todas as caras. Só a algumas. As outras não importam, nunca foram à almofada para serem lembradas. Refiro-me àquelas que tinham e deram sentido à cama, à ou às noites. Lembro-me de tudo (enfim, este tudo discute-se) mas não me lembro das faces. Lembro-me dos olhares, dos corpos, de muitas das palavras. 

E do mais importante: a promessa que cada uma dessas faces hoje esquecidas representou.

19.4.24

Pontapés no cu

Cada vez são precisos mais papéis, qualificações, certificados e o diabo a quatro. Isto é o mundo a empurrar-nos gentilmente porta fora. "O teu tempo passou. Fora!"

O problema sendo que esses pontapés no rabo nos são dados por muitos pés e não só os da regulamentação. 

Hiponcondrias episódicas

As predições da médica que me operou metamorfoseiam-se invariavelmente em factos e é à preguiça da carcaça que devo este atraso na cura. Talvez haja outro factor, mas isto não é arena para pormenores. 

Sei, isso sim e é o que interessa, que posso atravessar à vontade sem riscos de queda, incapacidade ou outros desastres e dispenso comprimidos e pomadas. Basta lavar atentamente e - precisa a senhora, olhos azuis radiantes - com água doce.

Hipocondríaco não sou, infelizmente. Mas tivesse ela mais vinte anos e eu menos vinte e deixaria de lado as certezas.

18.4.24

Hoje? Qual hoje?

Summertime... O Verão acaba sempre por chegar. Helena estendia-se ao meu lado na praia, muito direita. Tudo nela era direito, a começar pelo ventre e a acabar na cabeça. 

Não digo o nome da praia. Não quero que a identifiquem.

Ao fim de aproximadamente dois minutos estávamos engalfinhados um no outro.

Não entro em pormenores. 

O problema é que a praia estava cheia de gente e não foram nem uma nem duas as vezes em que parámos antes de por causa dos gritos das toalhas ao lado. 

A pergunta é: se fosse hoje teríamos parado? 

Depende do que se entende por hoje, não é? Hoje setenta anos ou hoje vinte anos hoje?

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 18-04-2024

Entro devagar - martiniquesamente? - no modo «mar». Já estou com um pé lá outro acolá. Amanhã - sexta-feira e eu pensava que já era sábado - vou deixar o bote o mais perto possível do pronto. Temos sábado para o terminar. Domingo vou a casa da família etíope que me convidou porque quer ter a certeza de que o tripulante está em boas mãos e segunda largo.

Largar - no sentido marítimo do termo, partir, largar amarras - é muito quase de certeza o verbo mais bonito da línga portugesa. Basta ver as suas declinações: «Larga à vante». «Larga a ré». Tudo claro? Vamos. Largar é um complemento de «claro», como em «limpo», «sem obstáculos». «Vamos.» Tudo isto vai acontecer segunda-feira de manhã se o mafarrico não se intrometer, ele que é useiro e vezeiro  em intromissões «sujas», em sujar o que está ou devia estar limpo.  

Nós marinheiros convivemos diariamente com ele. Está em todo o lado, no menor dos recantos, na mais pequena sombra de boa vontade, Como é que dizia o outro? - «O homem põe e Deus dispõe»? Erro, meu caro. O homem põe e o Diabo dispõe. O demo. O CO2. As alterações climáticas. A desigualdade de género. Chamem-lhe como quiserem, a entidade é a mesma: tudo o que se opõe à regular beleza de «Larga!» «Devagar avante.» «Leme todo a bombordo.» O filme passa por mim e eu ainda aqui todo quedo a beber rum com sumo de laranja (estes são melhores juntos do que separados), a ouvir jazz etíope e a sonhar. «Larga!»

Perguntam-nos muitas vezes «O que sente quando deixa de ver terra?» Tabarly respondeu brilhantemente a essa pergunta: «O que sinto quando deixo de ver terra? Nada.» Claro. O momento mágico não é ver ou deixar de ver terra. É quando o último cabo liberta o bote e a máquina é posta em devagar avante, leme a meio e em meia dúzia de segundos «leme todo a bombordo» e depois chega aquele momento, esse sim mágico: «ala que se faz tarde. Vamos!»

Não será bem assim. Tenho de ir a bancas antes de apontar para fora. Mas sim, é assim. Este momento deve ser, para um marinheiro, o equivalente para um crente de esperar ver a Virgem pendurada numa oliveira ou Jesus embrulhado num lençol virginalmente branco a sair do túmulo. 

- São só dois dias, estúpido!
- Sim, mas logo a seguir vêm três semanas, idiota.

16.4.24

Diário de Bordos - Fort-de-France, Martinique, DOM-TOM França, 16-04-2024

Venho (pelo que espero seja a última vez desta vez) a Fort-de-France. Tive sorte: vim num taxico e espero voltar noutro. Ainda os há, se bem sejam poucos.  As romarias do adeus têm sempre uma força especial porque detesto despedidas e esta foi exactamente isso, com o bónus do taxico, mais barato do que um táxi e mais rápido do que um autocarro, com a vantagem suplementar dos diálogos a bordo. Como todos os condutores de minivans do mundo este conduzia maravilhosamente e num instante pôs-me na cidade. O meu vizinho do lado tinha três irmãos pescadores - dos quais um morreu afogado - e o da frente fez uma brincadeira com a massa que o tripulante me passou (viemos os dois, ele para um lado e eu para outro, que isto de romarias sim, mas em solitário, se faz favor). Acabo no L'Impératrice, não podia deixar de ser, antes de ir para o terminal apanhar transporte para o Marin. Capelas visitadas: Biblioteca - procurar um livro do Marai que não têm e ler passagens da Cidade de Deus - a cabana dos cigarros aonde bebi um ti'punch e comprei quatro unidades, o Pain de Sucre, que continua o meu restaurante favorito nesta cidade e por fim, evidentemente, o L'Impé. Acho que herdei do meu Pai esta fixação no que se conhece, esta ideia de que mais vale ser bom cliente num sítio do que mau em dezenas deles, esta noção de fidelidade - ou melhor, esta noção de que há mais numa transacção comercial do que a transação ela própria. O almoço foi impecável de bom e de barato, como sempre, os cigarros e o ti'punch vieram acompanhados de várias manifestações de apreço - e servidos por uma miúda cujos seios dispensavam galharda e brilhantemente o soutien que não tinha, o primeiro rum no Impé veio um bocadinho acima da marca (o segundo veio normal, coisa que me dispenso de comentar).
Como sempre, só no Marin vejo quanto gosto desta cidade e só agora quão pouco a conheço e quão pouco a quero conhecer para além do que já está. O «gosto desta cidade» nunca chegará a «amo esta cidade». Não amo. Gosto destes trezentos metros lineares que dela percorro.

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Ao contrário do que esperava, consegui falar ao telefone com o senhor da Polymar. Reservo os prognósticos para o fim do jogo, como disse uma vez um cérebro brilhante cujo nome ignoro.

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(Cont.)

"Oiça um bom conselho..."

Tal como o caminho mais curto é aquele que conhecemos, o amor mais sensato é amar quem nos ama. Uma das metades está feita, a mais difícil. 

15.4.24

Sonhos, filmes

Trevas e sonhos são como o rabo e as calças, andam frequentemente juntos mas nem sempre. As sestas quotidianas produzem sonhos e são feitas às claras. E nem todas as noites me lembro dos sonhos ao acordar. A capacidade onírica de um sono não depende da luz exterior. Verdade seja dita: ignoro totalmente de que depende. Sei que a maioria dos meus sonhos tem um pormenor que me faz perguntar por onde é que as sinapses absorveram tanta informação. Pelos olhos? Ouvidos? Pele? Outra pergunta: que raio de coisas me anda a circular pelas sinapses? Que segredos escondem os neurotransmissores que por elas passeiam? E como os guardam tanto tempo, às vezes? Porque é que os sonhos adquiriram esta carga conotativa tão favorável, quando por vezes são tão aterradores? Não me refiro sequer aos pesadelos, mas aos sonhos normais, que vão buscar pormenores quase microscópicos, sonhos kafkianos, hiper-realistas do absurdo?

Dizem que sonhar é como ir ao cinema enquanto se dorme. Eu preferiria escolher o filme e deixar as trevas para quem gostar de filmes de terror.

14.4.24

Monólogos breves. Ou: Autobiografia resumida. ou: Aonde

- Não estou aonde quero estar.
- Aonde queres estar?
- Aonde não estou.

Diário de Bordos - St.-Anne / Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 14-04-2024

Domingo é dia de praia, de maneira venho aos piratas em St.-Anne. Viemos no bote, o tripulante e eu, um bocado a arrastar-se. O destino original era a praia de Salines e o meio a boleia mas no último momento mudei de ideia. Não me apetece perder tempo na borda da estrada num dia tão bonito.

Preparo-me para a semana que vem:  gelcoat na plataforma, ver se encontro uma solução para o esgoto dos duches, reclamar com a Polymar. Esta última tarefa – que será a primeira amanhã de manhã – será provavelmente inútil, mas pelo menos terei reagido. Mais vale perder do que não tentar. Isto dito, esta merda «interpela-me», entre aspas porque cito e é meio irónico meio dubitativo. A verdade é que gosto de ver o uso nas coisas. Gosto de ver-lhes a patine. Não gosto é de as ver negligenciadas, maltratadas. Uma coisa usada e bem tratada tem mais charme e é mais bonita, para mim, do que uma usada como nova. Ou seja: esta história da mesa do salão irrita-me triplamente. Primeiro por causa da mancha, segundo por me irritar a este ponto e terceiro por não conseguir perceber porque me irrita tanto.

O que aconteceu foi isto: fui à Polymar comprar acetona e outras coisas para fazer o gelcoat. Na loja pedi um saco de plástico para envolver a garrafa. Esse conjunto foi para dentro do meu saco impermeável e veio para bordo. Lá chegado pego no saco de plástico, apercebo-me de que está molhado e penso que é água, ponho-o em cima da mesa do salão e claro, não era água, era acetona. O frasco tinha uma fuga gigantesca (enfim, quase) na tampa. Meia hora a lixar com lixa mil serviu para atenuar bastante a mancha, mas ainda lá está, visível. Voltei à Polymar para trocar a garrafa e avisar o homem da loja – por sinal bastante simpático – do caso. Disse-lhe que me vou embora para a semana e que não haverá tempo para reparar a coisa aqui, mas amanhã vou lá consolidar a reclamação. Não servirá de nada, repito. A crença nos «actos de Deus» está entranhada no código genético desta actividade. Mas eu pergunto-me por que raio de carga de água é que Deus dirige sempre os seus actos contra nós, marinheiros e não a favor. Raio de Deus este... (A resposta à pergunta é fácil, claro. Isto é retórica de escapa, mais nada.)

Por outro lado, porque não considerar esta mancha uma simples consequência do uso, a primeira letra de patine? Há várias respostas possíveis. Em primeiro lugar, porque eu sei que o proprietário não partilha a minha opinião sobre a beleza das marcas de uso nas coisas; em segundo porque é resultado não de um uso normal mas de um erro grosseiro. Um garrafa nova e com a tampa ainda por abrir não deve ter fugas daquelas, muito menos num produto como a acetona. Felizmente não tinha o computador no saco e a máquina fotográfica estava dentro do seu invólucro. Em terceiro lugar, porque a mancha não é bonita, por muito ténue que seja. Lembro-me uma vez que deixei um ferro de passar em cima de uma mesa. A proprietária reclamou bastante (e quem sou eu para não lhe dar razão?) Mas a mancha não estava mesmo no meio da mesa e tinha a forma bonita, geométrica, triangular do ferro.

Não sei. Sei que estou fulo e que amanhã o meu dia vai começar com uma luta quixotesca e perdida, passe o pleonasmo. E sei que o restaurante dos piratas em St.-Anne (Pirate's beach) é bonito, que daqui a pouco vou nadar um bocadinho, que depois vou lavar a roupa, a que se seguirá um almoço rápido a bordo e uma sesta reparadora e restauradora. (Nb.: desaprovo inteiramente esta romantização da pirataria, actividade ignóbil praticada por homens - e algumas mulheres, que eram ainda piores - abjectos, hediondos, indignos, vis e tudo o que de repelente e reles a humanidade produziu.)

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O meu corpo abandono-me, escrevi recentemente. Claro que o mais sábio é habituar-me à ideia, que de resto nem sequer é assim tão recente. O meu conhecimento de farmácias, médicos, hospitais e centros de saúde aumentou em flecha nestes últimos seis anos. De Cuxhaven até ao Marin passando por Palma e por Cascais, Lisboa, Coimbra e Porto tem sido um vê se te avias. «Pelo menos ainda podes ir ao médico», dir-me-ão. «Pior será quando não puderes. Isto tem de ser discutido, se possível em presença dos netos, para que a resposta tenha um forte viés positivo; isto é, negativo. Isto é «está calado e cala-te.»

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De vez em quando venho ao Mango. Continua um sítio porreiro se a) não se comer e b) não se esperar que volte a ser o que era: ponto de encontro, agência de trabalho e centro noticioso.  O resto continua igual (ou quase. O pessoal era mais simpático e os preços não eram lunáticos). A localização e a decoração que se lhe adequa como rum a uma goela.

13.4.24

Monólogos breves

- Este corpo que pouco a pouco deixa de me pertencer... 
- Tens a certeza de que alguma vez foi teu? Vivias na ilusão, meu caro.
- Uma entre muitas.

12.4.24

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 12-04-2024

Isto está simultaneamente de maré baixa e de mau tempo e eu faço o que sempre faço nessas circunstâncias: cozinho devagar e oiço Leonard Cohen. Devagar não é uma imagem: refogar cebola, cenoura, pimento, carne picada e bacon separadamente, como se fosse uma ratatouille, é coisa que só se pode fazer de mau tempo e em terra. Depois juntei tudo numa panela com o que sobrava de uma late de tomate, acrescentei água e um copo de vinho tinto, deixei cozer um par de meias-horas, troquei a Chavela Vargas pelo Leonard, pus algum rum no copo que antes contivera vinho e pronto, a memória cavalga de novo por esses tempos fora, à rédea solta e leva-me a uma senhora que gostava tanto como eu do Cohen e que deixei fugir por causa da hubris, esse sinónimo de estupidez tantas vezes ignorado.

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A perspectiva de passar aqui mais uma semana sem nada que fazer abanou-me até às entranhas e pus-me à procura de trabalho para horas, dias, semana, o que vier. Dei com o nariz nas portas todas, claro: fim de época e uma semana? 

Menos uma. Não tenho um sim, mas tenho pelo menos um talvez. Amanhã saberei. Vou também trabalhar um bocadinho mais no S. D., apesar de não ser grande adepto da prática. Tento desculpar-me dizendo que o armador merece - o que é verdade - e que de qualquer foma este Verão estarei em Maiorca com o «meu» P. e que de qualquer outra forma tudo é melhor do que não fazer nada, sobretudo agora que estou a noventa e nove por cento da capacidade de trabalho e o um por cento que resta é o da pieguice, que tem sempre um lugar à mesa. De maneira assim é: o jantar recebeu a aprovação do tripulante e eu a de Leonard Cohen, o rum HSE de todos os envolvidos (menos o rapaz, que não bebe rum), amanhã vai chover - os aguaceiros precursores começaram hoje - se bem seja possível que as previsões se enganem e cá estou, à espera de peças.

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Ninguém imagina o que é esperar por peças. Uma vez no Panamá precisava de uma junta de cabeças para um motor (não me lembro da marca) e recebi por três vezes a junta errada. A empresa que mas enviava era a única em praticamente todos os Estados Unidos que as tinham e sabiam-no, de maneira recusavam absolutamente assumir as consequências do erro. Diziam-me, quando eu reclamava «compra-as noutra loja». Acabei por ter de pedir a um mecânico americano e amigo para as ir buscar em pessoa e vir ao Panamá montá-las. O transporte custava duas ou três vezes o que custavam as juntas e de qualquer forma não havia no Panamá quem mas conseguisse montar, de maneira acabei por pagar digamos dois ou três mil uma peça que custava cem, talvez quinhentos com a montagem. Esperar por peças é o Inferno do navegante, assim mesmo com maiúscula não vá o diabo pensar que estou a fazer pouco dele.

Esperar por peças deve ser a situação que mais nos confronta com a nossa incapacidade total, com a nossa falta de controlo sobre o que nos rodeia, com a nossa abissal fragilidade. Quando estou numa tempestade ou numa situação difícil sei o que tenho de fazer e faço-o. Aqui não há nada, rigorosamente nada que se possa fazer para acelerar o processo. Estamos na mão de uma longa cadeia de pessoas, cada uma delas pode enganar-se e nenhuma vai assumir as consequências do erro. Salvo raríssimas excepções, mas com essas é sensato não se contar. De maneira cá estou, à espera de peças enquanto cozinho, oiço Leonard Cohen, penso na hubris - os contrários atraem-se -, na miúda, que era linda como sete demónios juntos e bebo o fundo de uma garrafa de rum. Não tarda deito-me. «Never mind. We are ugly but we have the music.» 

«Lover, lover, lover come back to me.» 

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Trata-se apenas de não ceder, como sempre. «Never give an inch.» Não ceder. Ir com a corrente mas controlar a rota. Não encalhar nem ir pela cascata abaixo. Ir dormir. Pode ser que amanhã tenha um gancho qualquer à espera. De qualquer forma não há mais rum e não vou sair.

A sério?

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Em minha defesa: fui deitar-me. Mas a posição horizontal era-me insuportável. Tentei e mais vale perder do que não tentar. Hoje é sexta-feira, dia de música ao vivo na Paillote Cayali e aqui desafiei a minha seriedade, desafio cobarde porque ela já tinha perdido.

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Quem ganhou fui eu. O grupo hoje é bastante bom, a rapariga atendeu-me rapidamente e trouxe-me a cerveja e o gelado com igual celeridade, não está a chover e...

Só chove dentro de mim? 

"Ah, na minha alma sempre chove. 
Há sempre escuro dentro de mim.
...

Quando é que eu serei da tua cor,
Do teu plácido e azul encanto,
Ó claro dia exterior, 
Ó céu mais útil do que o meu pranto?"

O poema é de Fernando Pessoa, claro. A chuva a sério dentro de mim começou pouco depois de o ter transcrito, quando ainda era só uma emoção, mas disso não quero falar agora. Aquela megera consegue dar cabo do mais pacífico dos momentos.